segunda-feira, 30 de maio de 2011

Acorrentados


Quem coleciona selos para o filho do amigo
quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava
quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho
quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia
quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre
quem se ri das próprias rugas
quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta
depois de um fracasso sentimental
quem procura na cidade os traços da cidade que passou
quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada
quem costura roupa para os lázaros
quem envia bonecas às filhas dos lázaros
quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira
quem manda livros aos presidiários
quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio
quem escolhe na venda verdura fresca para o canário
quem se lembra todos os dias do amigo morto
quem jamais negligencia os ritos da amizade
quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona
quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga
quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos
quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças
quem guarda as cartas do noivado com uma fita
quem sabe construir uma boa fogueira
quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos,
dos musgos e dos liquens
quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência
quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição
quem se desata em sorriso à visão de uma cascata
quem leva a sério os transatlânticos que passam
quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz
quem de repente liberta os pássaros do viveiro
quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo
quem julga adivinhar o pensamento do cavalo
todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

 Paulo Mendes Campos

Texto extraído do livro "
O Anjo Bêbado", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969, pág. 105.

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