quinta-feira, 15 de março de 2012




A noite que perdi uma mulher para R.Teixeira - Xico Sá

Finalmente o outono do patriarca. Ele se foi. Adeus, Ricardo Teixeira, o todo-poderoso da CBF havia quase um quarto de século.
Este blog não é lugar para chutar cachorro morto. Até porque o seu titular jamais maltrataria um cão. Principalmente aqueles cães danados do Mercado da Encruzilhada, os que mais amo, na invicta cidade do Recife.
Ele se foi. E aqui conto o nosso melhor encontro. Sob o signo de Eros. Lá estava um ainda soberbo sr. Teixeira entre as moças mais belas do Café Photo, cabaré de luxo desta SP de tantas ofertas e demandas.
Reinava o sr. Teixeira. Pelo menos naquele momento não estava fazendo mal à humanidade. Só às moças. Lindas. Estava na metade do reinado que acabou nesta semana.
Por inveja, não inveja do pênis como canta o doutor Sigmund, mas inveja da grana, me aproximei do homem da CBF.
E tirei uma onda. Ele é esperto e sabido, mas caiu feito um patinho do Ibirapuera.
-Seu Ricardo, quanta injustiça da imprensa paulista contra o sr., não é mesmo? –fiz a troça.
-Finalmente alguém reconhece! –disse ele, entre um cangote de uma loira e de uma morena.
-Aquele Juca Kfouri, então, quanta maldade! – segui na farsa.
-Um frustrado, só pode ser isso. Não deve comer ninguém – riu com os dentes dentro do copo de uísque.
Uma pedra do gelo do copo dele caiu no meu lustrado sapato bico fino de repórter outrora sério.
Mister Barrol, grande amigo, passou por nós às gargalhadas. Cadu, Coppola e Lanza idem.
-Uma perseguição injusta, seu Teixeira – seguia na bajulação às avessas.
-Ainda bem que alguém finalmente reconhece – disse o capo, agora com uma mulher em cada perna. Lindas. Inveja.
Um dia ainda serei presidente da CBF, especulei.
-Não, pô, sacanagem, milzinho não, tá pensando que sou da Fifa – tentava negociar com a mulher mais bonita que vi na vida.
Óbvio, tio Nelson, que ela saiu com o confederado-mor, o sr. Teixeira. Foi a primeira vez que fui vítima do seu superfaturamento.
Perdi, quem manda frequentar lugar de playboy. Perdeu, suposto pleiba.
Uma noitada e tanto.
Sem bala pra gastar no Photo com as melhores, acabei mesmo foi no Love Story, a casa de todas as casas. Pela metade do preço fui feliz inteiro.

Noite de secar com o corvo Edgar - Xico Sá

Porque hoje é quarta-feira, dia de Copa do Brasil –essa Coluna Prestes da bola- e dia de Libertadores da América.
Dois torneios incríveis para os secadores de plantão.
Dois torneios que põem o corvo Edgar, minha agourenta ave de estimação, mais histérica do que nunca.
Está aqui no poleiro, à espera da rodada, de olho na várzea brasileira e de olho no Corinthians no México.
Aliás já vibrou muito com o seu Asa de Arapiraca, que bateu o Santa Quitéria (MA). Yes!
Mas gosta de secar mesmo são os grandes. Os Flas, os Flus, os Timões, os Palmeiras…
Porque secar, amigo, é mais divertido do que torcer.
Porque a vida é mata-mata, daqui ninguém sai vivo, ninguém escapa.
Apenas para os bem-nascidos e bem-planejados a vida é de pontos corridos.
Eu seco, tu secas, ele seca.
Nunca se secou tanto em São Paulo como agora. A cidade está partida ao meio, como o Visconde de Calvino. Metade corintiana, metade Cruz Azul do México a essa altura.
Gozar com o falo alheio, como diria  o amigo Sigmund, dando requintes intelectuais à psicanálise  de boteco, é melhor que o gozo próprio.
Ô, se é!
Secar é não saber sequer o nome de quem marcou o gol de quarta à noite no Anacleto ou na altitude boliviana.
Secar é relax. Se não está dando certo, mudamos de canal e secamos o outro jogo.
Meu melhor dia, minha virtuose de secador profissional foi num histórico Náutico 0 x 1 Íbis. Com direito a pênalti perdido e tudo.
O pênalti, aliás, é o êxtase do secador. Ele chega a se adiantar, no estádio ou no sofá, junto com o goleiro. Ele abre os braços, provoca, fala mal da mãe do cobrador bem ao pé do ouvido… Todo secador que se preza adivinha até o canto.
Quem você vai secar ou secou nesta quarta?
O corvo Edgar deseja uma péssima noite a todos os favoritos.

Ainda se pede em namoro em SP - Xico Sá

Havia séculos que este cronista caminhador e bisbilhoteiro não testemunhava tal cena.
Foi agorinha. Na alameda Santos quase esquina com a Brigadeiro. Num kilo da vida.
Sim, pelo menos hoje, em plena hora do almoço, existiu amor em SP, amigo Criolo.
A mocinha pálida, que comia uma salada sem graça, tomou um susto quando o moço, que comia uma maminha sangrenta com coca-cola, propôs, na lata:
-Vim aqui hoje para te pedir em namoro.
Ela quase engasga com a folhinha de rúcula.
Suspense. Amor é Hitchcock.
Eu pedi mais um café só para ouvir o desfecho.
Não há passionalidade em quem só come salada, refleti bobamente.
Diz sim, magricela miserável. Eu torcia pelo corajoso rapaz. Quase meto a minha colher no meio daquele silêncio.
O máximo que ela fez foi alisar o braço do moço e dizer que depois conversavam sobre isso.
De qualquer forma já valeu a atitude do camarada com cara de escriturário. Ela, mais fina, tinha jeito de secretária bilíngue, exímia.
Como não se pede mais em namoro hoje em dia, achei duca a coragem do mancebo.
Não se pede mais em namoro, como sempre repito nesta tribuna testosterônica.
É namoro ou amizade? Rolo, cacho, ensaio de amor, romance ou pura clandestinidade?
“Qualé  a sua, meu rapaz?!”, indaga a nobre gazela.
Não se pede mais em namoro.
E o homem do tempo nem chove nem molha. Só no mormaço, só na leseira das nuvens esparsas.
Não foi o caso do destemido moço que encontrei agora no kilo da alameda Santos.
No tempo do amor líquido, para lembrar o título do livro do Zygmunt Bauman sobre a fragilidade dos encontros amorosos, é difícil saber quando é namoro ou apenas um lero-lero, vida noves fora zero…
Cada vez mais raro o pedido formal de enlace, aquele velho clássico, o cara nervoso, se tremendo como vara verde: “Você me aceita em namoro”?
São raros, raríssimos hoje esses nobres pedidos. Em alguns setores mais modernos e urbanos, digamos assim, talvez nem exista mais.
O amor e as suas mudanças.
A maioria dos homens não pega mais no tranco.
No tempo do “ficar”, quase nada fica, nem o amor daquela rima antiga.
Alguns sinais, porém, continuam valendo e dizem muito. O ato das mãozinhas dadas no cinema, por exemplo, ainda é o maior dos indícios.
Tanto quanto um bouquet de flores, mais do que uma carta ou um email de intenções, mais do que uma cantada nervosa, mais do que o restaurante japonês, mais do que um amasso no carro, mais do que um beijo com jeito, daqueles que tiram o gloss e a força dos membros inferiores.
“Vamos pegar uma tela, amor?”, como se dizia não muito antigamente.
Eis a senha.
Mais até do que um jantar à luz de velas, que pode guardar apenas um desejo de sexo dos dons Juans que jogam o jogo jogado e marketeiro dos bistrozinhos óbvios.
O cinema, além da maior diversão, como diziam os cartazes de Severiano Ribeiro, é a maior bandeira.
Nada mais simbólico e romântico. Os dedos dos dois se encontrando no fundo do saco das últimas pipocas.
Não se pede mais em namoro como esse rapaz agora em plena hora do almoço.
E nas mesas ao lado, naquele mesmo restaurante, os homens engordavam, vida de gado, falando das firmas, dos projetos, dos chefes, dos lucros que não irão para os seus bolsos.

Como era bom o tempo...

Como era bom
o tempo em que Marx explicava o mundo
tudo era luta de classes
como era simples
o tempo em que Freud explicava
que Édipo tudo explicava
tudo era clarinho limpinho explicadinho
tudo muito mais asséptico
do que era quando eu nasci
hoje rodado sambado pirado
descobri que é preciso
aprender a nascer todo dia
Chacal

sexta-feira, 9 de março de 2012

ESOTÉRICO ¹ EXOTÉRICO

Plano de Fuga

Um fiapo de fumaça se desprende
Dos escombros do seu último projeto
O seu plano de fuga deu errado, apesar
Do raciocínio estar correto
Talvez nem tudo esteja perdido
A esperança é maior que os seus esforços
Ela é quem manda os sinais de fumaça
Ela é quem faz a contagem dos corpos
Bastava dar dez passos e girar
A maçaneta no sentido anti-horário, passar
Pela porta e ir em frente
Desprezando as ordens em contrário
Talvez nem tudo esteja perdido
A esperança é maior que os seus esforços
Ela é quem manda os sinais de fumaça
Ela é quem faz a contagem dos corpos

Cioran: trecho de "Borges. Carta a Fernando Savater"

[...]

Nunca fui atraído por espíritos confinados numa única forma de cultura. Não se enraizar, não pertencer a nenhuma comunidade - esta foi e é minha divisa. Voltado para outros horizontes, sempre procurei saber o que se passava alhures. Aos vinte anos, os Bálcãs não podiam me oferecer mais nada. É o drama, e a vantagem também, de ter nascido num espaço "cultural" menor, qualquer que seja ele. Oestrangeiro se tornara meu deus. Daí esta sede de peregrinar através das literaturas e das filosofias, de devorá-las com ardor doentio. O que acontece no Leste da Europa deve necessariamente acontecer nos países da América Latina e observei que seus representantes são infinitamente mais informados, mais "cultos" que os Ocidentais, incuravelmente provincianos. Nem na França ou na Inglaterra vi alguém que tivesse uma curiosidade comparável à de Borges, uma curiosidade exacerbada até a mania, até o vício, digo realmentevício porque, em matéria de arte e de reflexão, tudo o que não se transforma em entusiasmo um pouco perverso é superficial, logo irreal.
[...]

CIORAN. "Borges. Carta a Fernando Savater". In:_____. Exercícios de admiração. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

Bethânia

Caetano Velos

Não concebo por que o cara que aparece no YouTube ameaçando explodir o Ministério da Cultura com dinamite não é punido. O que há afinal? Será que consideram a corja que se "expressa" na internet uma tribo indígena? Inimputável? E cadê a Abin, a PF, o MP? O MinC não é protegido contra ameaças? Podem dizer que espero punição porque o idiota xinga minha irmã. Pode ser. Mas o que me move é da natureza do que me fez reagir à ridícula campanha contra Chico ter ganho o prêmio de Livro do Ano. Aliás, a "Veja" (não, Reinaldo, não danço com você nem morta!) aderiu ao linchamento de Bethânia com a mesma gana. E olha que o André Petry, quando tentou me convencer a dar uma entrevista às páginas amarelas da revista marrom, me assegurou que os então novos diretores da publicação tinham decidido que esta não faria mais "jornalismo com o fígado" (era essa a autoimagem de seus colegas lá dentro). Exigi responder por escrito e com direito a rever o texto final. Petry aceitou (e me disse que seus novos chefes tinham aceito). Terminei não dando entrevista nenhuma, pois a revista (achando um modo de me dizer um "não" que Petry não me dissera - e mostrando que queria continuar a "fazer jornalismo com o fígado") logo publicou ofensa contra Zé Miguel, usando palavras minhas. 

A histeria contra Chico me levou a ler o romance de Edney Silvestre (que teria sido injustiçado pela premiação de "Leite derramado"). Silvestre é simpático, mas, sinceramente, o livro não tem condições sequer de se comparar a qualquer dos romances de Chico: vi o quão suspeita era a gritaria, até nesse pormenor. Igualmente suspeito é o modo como "Folha", "Veja" e uma horda de internautas fingem ver o caso do blog de Bethânia. O que me vem à mente, em ambas as situações, é a desaforada frase obra-prima de Nietzsche: "É preciso defender os fortes contra os fracos." Bethânia e Chico não foram alvejados por sua inépcia, mas por sua capacidade criativa. 

A "Folha" disparou, maliciosamente, o caso. E o tratou com mais malícia do que se esperaria de um jornal que - embora seu dono e editor tenha dito à revista "Imprensa", faz décadas, que seu modelo era a "Veja" - se vende como isento e aberto ao debate em nome do esclarecimento geral. A "Veja" logo pôs que Bethânia tinha ganho R$ 1,3 milhão quando sabe-se que a equipe que a aconselhou a estender à internet o trabalho que vem fazendo apenas conseguiu aprovação do MinC para tentar captar, tendo esse valor como teto. Os editores da revista e do jornal sabem que estão enganando os leitores. E estimulando os internautas a darem vazão à mescla de rancor, ignorância e vontade de aparecer que domina grande parte dos que vivem grudados à rede. Rede, aliás, que Bethânia mal conhece, não tendo o hábito de navegar na web, nem sequer sentindo-se atraída por ela. 

Os planos de Bethânia incluíam chegar a escolas públicas e dizer poemas em favelas e periferias das cidades brasileiras. Aceitou o convite feito por Hermano como uma ampliação desse trabalho. De repente vemos o Ricardo Noblat correr em auxílio de Mônica Bergamo, sua íntima parceira extracurricular de longa data. Também tenho fígado. Certos jornalistas precisam sentir na pele os danos que causam com suas leviandades. Toda a grita veio com o corinho que repete o epíteto "máfia do dendê", expressão cunhada por um tal Tognolli, que escreveu o livro de Lobão, pois este é incapaz de redigir (não é todo cantor de rádio que escreve um "Verdade tropical"). Pensam o quê? Que eu vou ser discreto e sóbrio? Não. Comigo não, violão. 

Se pensavam que eu ia calar sobre isso, se enganaram redondamente. Nunca pedi nada a ninguém. Como disse Dona Ivone Lara (em canção feita para Bethânia e seus irmãos baianos): "Foram me chamar, eu estou aqui, o que é que há?"

O projeto que envolve o nome de Bethânia (que consistiria numa série de 365 filmes curtos com ela declamando muito do que há de bom na poesia de língua portuguesa, dirigidos por Andrucha Waddington), recebeu permissão para captar menos do que os futuros projetos de Marisa Monte, Zizi Possi, Erasmo Carlos ou Maria Rita. Isso para só falar de nomes conhecidos. Há muitos que desconheço e que podem captar altíssimo. O filho do Noblat, da banda Trampa, conseguiu R$ 954 mil. No audiovisual há muitos outros que foram liberados para captar mais. Aqui o link: http://www.cultura. gov. br/site/wp-content/up loads/2011/02/Resultado-CNIC-184%C2%AA.pdf . Por que escolher Bethânia para bode expiatório? Por que, dentre todos os nossos colegas (autorizados ou não a captar o que quer que seja), ninguém levanta a voz para defendê-la veementemente? Não há coragem? Não há capacidade de indignação? Será que no Brasil só há arremedo de indignação udenista? Maria Bethânia tem sido honrada em sua vida pública. Não há nada que justifique a apressada acusação de interesses escusos lançada contra ela. Só o misto de ressentimento, demagogia e racismo contra baianos (medo da Bahia?) explica a afoiteza. Houve o artigo claro de Hermano Vianna aqui neste espaço. Houve a reportagem equilibrada de Mauro Ventura. Todos sabem que Bethânia não levou R$ 1,3 milhão. Todos sabem que ela tampouco tem a função de propor reformas à Lei Rouanet. A discussão necessária sobre esse assunto deve seguir. Para isso, é preciso começar por não querer destruir, como o Brasil ainda está viciado em fazer, os criadores que mais contribuem para o seu crescimento. Se pensavam que eu ia calar sobre isso, se enganaram redondamente. Nunca pedi nada a ninguém. Como disse Dona Ivone Lara (em canção feita para Bethânia e seus irmãos baianos): "Foram me chamar, eu estou aqui, o que é que há?"

Politica

paul valery

Repugno tudo o que quer me convencer – um partido, uma religião que busca adeptos, que quer o número e a propagação são marcados (para mim) pela ignomínia. Uma doutrina deve, para ser nobre, jamais ceder ao desejo de ser compartilhada. Sit ut est ut non sit [que seja como é ou que não seja]. 

Não quero fazer aos outros o que não gostaria que me fizessem. 

Pois ocorre que, para atrair o número, introduz-se ou tolera-se o suficiente para aborrecer os alguns, e ocorre uma duplicidade, uma impureza na doutrina. Não se sabe mais se tal ponto é uma questão de fé ou não. Chega-se a misturas estranhas, a reservas secretas. São Tomás e o sangue de São Januário.

-- Ter razão. Querer ter razão – propagar. Querer convencer.

Isso leva aos milagres... à “publicidade”.

Bibliofilia

O livro velho, tantas vezes lido!
Com furos e fissuras ficou feio
Por uso, mas de súbito está cheio
De vida, ao tato e à vista oferecido.

O livro, que até pouco era defunto,
Ressurge "sem surpresa para o sábio"
Que sabe, ó Transformista de alfarrábio,
O quanto de arte pões no teu assunto.

Jovem de novo, afoito para o afã:
O livro – feito antiga cortesã
Que alguma fada-mãe deixasse virgem;

E, como se escutássemos a voz
Dourada de uma excelsa musa, nós
Relemos, entretidos na vertigem.



Paul Verlaine: "Bibliophilie" / "Bibliofilia" : tradução de André Vallias

Ainda a vanguarda

EM ARTIGO que aqui publiquei em 3 do corrente, afirmei que, tendo cumprido a sua função, a vanguarda acabou. Não cheguei, porém, a explicar que uma das principais razões pelas quais penso assim é que estou convencido de que o feito principal da vanguarda enquanto vanguarda não foi de natureza propriamente estética ou artística, mas cognitiva e, mais precisamente, conceitual.

Em outras palavras, não é que, a partir da experiência da vanguarda, a arte tenha ficado melhor do que era, mas que, sobre ela, se aprendeu alguma coisa que não se sabia antes. Deu-se um aprendizado, um progresso cognitivo após o qual se passou a saber algo fundamental, antes não plenamente reconhecido, sobre a natureza da arte.

Com certeza o divórcio mais célebre entre o feito conceitual e o feito estético de uma obra não se deu no campo da poesia, mas no das artes plásticas. Refiro-me, é claro, a "Fontaine", o urinol que Marcel Duchamp pôs de cabeça para baixo e expôs como arte. Como se sabe, a partir de "Fontaine" e do conceito correlato de ready-made, foi profunda e amplamente posto em discussão o próprio conceito de arte. Ou seja, uma peça de valor artístico ou estético praticamente insignificante foi capaz de ter uma importância conceitual incalculável.

Ora, evidentemente, o valor puramente conceitual de uma coisa está naquilo que ela ensinou, e não nela própria. É claro que nada impede que uma obra seja importante tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista conceitual. Se o seu valor é exclusivamente conceitual, porém, ela não passa de veículo para o que ensina. Logo que o que ensina é aprendido, ela passa a ser mero exemplo do que ensinou, dotado, no máximo, de um valor histórico.

Em outras palavras, uma vez realizado o feito conceitual de uma obra puramente cognitiva, ela se torna supérflua. Assim como quem quiser aprender a lei da gravidade fará melhor lendo um livro-texto de física clássica do que os "Principia" de Newton, cujo texto original tem hoje um valor meramente histórico, assim também mais vale ler sobre "Fontaine" e ver as suas fotos do que contemplar uma das suas réplicas (a obra "original" desapareceu há muito tempo). O mesmo jamais poderia ser dito de uma obra dotada de valor estético, como "Les Demoiselles d'Avignon", de Picasso, ou o soneto "Salut", de Mallarmé, cujas presenças são insubstituíveis.
Supor que uma obra importante do ponto de vista cognitivo fosse necessariamente importante do ponto de vista artístico ou estético foi um equívoco comum da vanguarda e dos seus admiradores.

Por outro lado, não perceber ou negar que uma obra estética ou artisticamente insignificante ("Fontaine" é o caso clássico) pudesse ter uma grande importância conceitual e histórica foi o erro dos detratores da vanguarda.

Não só o feito da vanguarda enquanto vanguarda foi primariamente conceitual, mas o que com esse feito se aprendeu pode ser enunciado em poucas palavras. Aprendeu-se, de uma vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade -em princípio- de que a arte empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes. O "gênero" artístico revelou-se como convencional e perdeu toda a importância. A obra de arte não se vale de direitos hereditários ou de prerrogativas de família. Isso não significa que todas as obras se equivalham, mas que cada uma é antes um indivíduo do que um membro de uma espécie ou gênero e que é enquanto indivíduo que exige ser considerada.

Ora, o caminho até essas descobertas -que, no fundo, são o desdobramento de uma só- já foi cumprido e não tem como se estender. Não é possível ir "além" ou voltar "aquém" delas. Nesse sentido, não há mais vanguarda. O seu percurso já foi cumprido e nenhum artista ou crítico moderno pode dar-se ao luxo de ignorá-lo.

No artigo mencionado, eu já havia observado que se, etimologicamente, vanguarda é, como se sabe, o destacamento que, progredindo à frente do grosso do exército, abre caminho para este, de modo que, analogamente, dizem-se vanguarda também os artistas que, progredindo à frente dos demais, abrem caminho para estes, então essa designação só é de fato inteiramente adequada aos artistas cujo progresso não pode deixar de ser reconhecido e assimilado pelos demais.

Tal é o caso do progresso cognitivo que acabo de descrever que, sendo tão irrepetível quanto a descoberta da lei da gravidade, não pode mais ocorrer na arte experimental contemporânea.

O teólogo marxista

O PROFESSOR de teoria literária Terry Eagleton, da Universidade de Lancaster, declarou há poucos dias que "Deus volta ao debate intelectual de duas maneiras: há uma polêmica contra ele, por um lado, e, por outro, um aproveitamento de recursos teológicos por parte de uma série de pensadores de esquerda declaradamente ateístas".

Segundo Eagleton, que se considera marxista, o trabalho teológico mais importante de hoje está sendo feito por ateístas de esquerda. Isso se explica porque, "quando a esquerda passa por tempos difíceis, não pode se dar ao luxo de olhar os dentes do cavalo, como se diz. E, se descobre que algumas ideias teológicas podem ser úteis, então, por que não?".

Nesse contexto, Eagleton cita Habermas, Badiou, Agamben, Zizek.

Pelo jeito, os tempos estão mesmo bicudos para os marxistas. Houve época em que eles jamais sacrificariam um princípio tendo em vista a solução de uma dificuldade conjuntural. Ora, o ateísmo e o materialismo se encontravam, para Marx, entre as mais fundamentais questões de princípio. Para ele, a crítica da religião era a condição sine qua non de toda crítica.

Agora é diferente. Primeiro, os marxistas à la Eagleton julgam a utilidade de uma ideia -e não mais apenas a de uma tática- como critério para adotá-la: isto é, aderiram ao pragmatismo epistemológico; segundo, consideram úteis as ideias teológicas; terceiro, consideram fazer o trabalho teológico mais importante de hoje.

Não deixa de ser curioso, pois "ateísta" é quem não acredita em Deus; e "teologia" é a ciência que trata de Deus. Como pode ser útil tratar-se de alguma coisa em que não se acredita, a menos que seja para negá-la? Como é possível ignorar que quem faz trabalho teológico é necessariamente teísta, ou que quem é ateísta não faz trabalho teológico?

Talvez eu não esteja sendo bastante "dialético", ao dizer essas coisas... Eles, porém, não estão sendo nada materialistas, ao se dedicarem ao "trabalho teológico mais importante de hoje".

Ora, abandonar o materialismo é necessariamente abandonar o MATERIALISMO dialético, isto é, a filosofia marxista, e abandonar o MATERIALISMO histórico, que pretende ser a ciência marxista da história. Logo, esses soi-disant marxistas abandonaram de fato o marxismo, mas não têm (exceto, sem dúvida, no confessionário dos seus párocos) coragem de confessá-lo.

Mas creio ser possível entender por que "marxistas" como Terry Eagleton e Alain Badiou, que, segundo Eagleton, é "o maior filósofo francês vivo", abandonando, na prática, o materialismo, pretendem tornar-se teólogos. É que, antes de serem "marxistas", eles são "revolucionários", ou melhor, apocalípticos.

Recentemente a revista "Serrote" publicou um capítulo do livro "Razão, Fé e Revolução", de Eagleton. Em determinado ponto, ele tenta explicar o pensamento de Badiou.

"Para ele, a fé consiste numa lealdade tenaz ao que chama de "evento" -um acontecimento absolutamente original que está desconjuntado do fluxo suave da história e que é inominável e inapreensível no contexto em que ocorre. Verdade é o que corta na transversal da fibra do mundo, rompendo com uma revelação mais antiga e fundando uma realidade radicalmente nova [...]. Os eventos citados por Badiou são um tipo de impossibilidade quando medidos por nossos padrões usuais de normalidade."

Diga-se a verdade: são uma impossibilidade quando medidos pelos padrões universais da RACIONALIDADE. Em suma, a revolução que esses novos teólogos propõem nada tem, de fato, a ver com o marxismo, que se pretendia o suprassumo da racionalidade, pois ela consiste num milagre. "Milagres ocorrem sim", diz Slavoj Zizek, também explicando o pensamento teológico do papa Badiou.

Segundo esse modo de pensar, a verdade só é discernível pelos membros da nova comunidade de crentes. A rigor, não passa, portanto, de uma crença. Comentando - e aprovando- tais teses, Zizek especula que a verdadeira fidelidade ao acontecimento é "dogmática" no sentido preciso de ser fé incondicional, de ser uma atitude que não procura boas razões e que, por essa razão mesma, não pode ser refutada por nenhuma "argumentação".

Ora, ocorre que aquilo que se imuniza contra a razão é exatamente o irracional. Em suma, trata-se do mais puro irracionalismo religioso.

Sobre os ateus envergonhados

Confirmando o que observei sobre os ateus envergonhados, hoje uma carta de leitor à Folha, escrita por uma pessoa que se diz ateia, afirma considerar “boa notícia a informação [...] de que a campanha contra a discriminação ao ateísmo foi cancelada. Ela me pareceu agressiva demais”. 


Então é agressivo dizer que “a religião não define o caráter”? É agressivo dizer a verdade? Por que é que os ateus devem ouvir calados as proposições não apenas falsas mas caluniosas e ofensivas dos religiosos sobre o ateísmo, porém os religiosos devem ser poupados de ouvir verdades simples como essa?

Segundo o mesmo leitor, os ateus não necessitam “usar a mesma intolerância e ódio que os religiosos têm pelos que não creem na mesma coisa que eles”. Também acho. Mas deixar de se defender da intolerância, do ódio e das calúnias dos religiosos não é uma demonstração de tolerância, mas de covardia, que só faz confirmar aos religiosos intolerantes, raivosos e caluniosos que é assim mesmo que eles devem continuar a ser.

Apresentação de "A montanha mágica", de Thomas Mann

Li A montanha mágica pela primeira vez quando adolescente. A imponência do volume sugeria, de fato, uma montanha a ser escalada; quanto à mágica, senti-a desde as primeiras páginas. 


Na verdade, Thomas Mann extraiu o título desse romance do trecho de O nascimento da tragédia em que Nietzsche diz: “Agora a montanha mágica do Olimpo como que se nos abre e mostra as suas raízes. O grego conheceu e sentiu os pavores e horrores da existência: para poder não mais que viver, precisou conceber a resplandecente criatura onírica dos olímpicos.” Mas os tempos modernos são outros. Ironicamente, na montanha mágica de Thomas Mann, situada na Suíça, não se encontram seres sobre-humanos, mas humanos enfermos: não a morada dos deuses, mas um sanatório para tuberculosos, do qual o escritor alemão faz um microcosmo em que encena, de modo magistralmente depurado, tanto o enfrentamento quanto o entrelaçamento das diferentes idéias que moviam o espírito europeu nos anos imediatamente anteriores à eclosão da primeira guerra mundial.

Entretanto, A montanha mágica não consiste num tratado de filosofia ou de história das idéias, mas num romance. Graças à arte do autor, seus personagens ficam-nos na memória como seres de carne e osso. Alguns são inesquecíveis: a russa Mme. Chauchat, cujos “olhos quirguizes” lembram ao personagem central – o “jovem singelo, ainda que simpático”, Hans Castorp – certo colega do ginásio, e contribuem para lhe provocar uma verdadeira obsessão erótica; o holandês Mynheer Peeperkorn (baseado no escritor – Prêmio Nobel de Literatura – Gerhart Hauptmann), que, “robusto e delicado”, domina, pela sua presença monumental e pelos seus gestos teatrais, os ambientes em que se encontra, apesar (ou também por causa?) do caráter inconcluso de quase todas as suas afirmações; e sobretudo, pelo menos para mim, o humanista italiano Settembrini e o jesuíta Naphta (que tudo indica ter sido baseado no filósofo Georg Lukacs), que se digladiam intelectualmente em torno do espírito de Hans Castorp – e do leitor.

Settembrini é o que Thomas Mann chama, não sem uma pitada de desdém, de Zivilizationsliterat, “literato da civilização”, isto é, um intelectual, herdeiro espiritual do humanismo e da Ilustração, nos moldes tradicionais da Europa Ocidental. Sua linguagem é “plástica”, como ele mesmo define, e tende a resvalar para a retórica. Interessado na vida mundana, sua figura é, no entanto, um pouco démodé e ridícula, tanto que, logo que o vê, Castorp o toma por um tocador de realejo. Naphta deveria representar, ao contrário, a cultura genuinamente alemã e romântica, em oposição àquilo que inúmeros pensadores alemães, tais como Spengler, tomavam como o mito superficial da civilização universal; no entanto, com notável ironia e profundidade, Thomas Mann o caracteriza como judeu da Europa Central, jesuíta e apologista dos valores da Idade Média. Chocantemente feio, ele é, no entanto, ao contrário de Settembrini, impecavelmente elegante e refinado.

“A malícia, senhor”, diz Settembrini no seu primeiro encontro com Hans Castorp, “é o espírito da crítica, e a crítica representa a origem do progresso e do esclarecimento”. Ao tratar cada um desses dois personagens com irreverência, logo distância crítica, equivalente, Thomas Mann assume plenamente o direito de – nas palavras de Strindberg que ele gostava de citar – “jogar com pensamentos e experimentar com pontos de vista, mas sem se atar a coisa alguma, pois a liberdade é o ar vital do poeta”. A verdade é que A montanha mágica exemplifica perfeitamente a tese de Schlegel de que “os romances são os diálogos socráticos de nosso tempo. Nessa forma liberal a sabedoria de vida refugiou-se da sabedoria escolar”.

De todo modo, talvez a característica mais assombrosa das discussões entre Settembrini e Naphta, para quem os lê no princípio do século XXI, é a sua inteira atualidade. De um lado, o religioso para quem é mister “espalhar o terror para a redenção do mundo e para a conquista do objetivo da redenção, que é a relação filial com Deus, sem a intervenção do Estado e das classes”; de outro, o secularista para quem é imperativo salvar e expandir as conquistas do Renascimento e do Século das Luzes, que, segundo ele, são “personalidade, direitos do homem, liberdade”. Essas posições se confrontam e desenvolvem em diálogos memoráveis, e um calafrio nos percorre quando nos damos conta do caráter profético das palavras com que Thomas Mann – bem antes da ocorrência de Auschwitz ou do Arquipélago Gulag, ou dos aviões e homens-bomba do nosso tempo – faz Naphta defender, por exemplo, a tese de que “o segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. O que ela necessita, o que deseja, o que criará é – o terror”.

Mas A montanha mágica é atual também em outro sentido. No passado, não faltou quem qualificasse a estrutura dos seus romances de insuficientemente experimental, em comparação com as dos romances de James Joyce ou Robert Musil, por exemplo. Trata-se de um equívoco. Cada obra de arte é sui generis, e deve ser respeitada e julgada segundo os critérios que ela mesma impõe. Em particular, são inaceitáveis os diagnósticos e as receitas baseados em tendências literárias à la page. A arte de Thomas Mann não fica em nada a dever à de Joyce ou Musil. Além disso, não se poderia compreender o caráter experimental de uma obra partir de semelhantes comparações. Convém contemplar a probabilidade de que o autor leve a sério a máxima que repete diversas vezes, ao longo do romance: placet experiri, isto é, “convém experimentar”. Seria cegueira taxar de conservador um estilo que admite, por exemplo, amplas passagens ensaísticas; que relativiza perspectivisticamente todas as posições espirituais, inclusive as do narrador; que emprega técnicas de composição extraídas da arte musical, como o Leitmotiv; que utiliza magistralmente a citação e a alusão; etc.

De todo modo, devo dizer que A montanha mágica foi para mim umBildungsroman, isto é, um romance de formação, não apenas no sentido convencional e tradicionalmente reconhecido de que narra o aprendizado intelectual e emocional do já citado Hans Castorp, mas também de um modo muito pessoal, pois contribuiu decisivamente para a minha própria formação intelectual e emocional. Data, com efeito, da época da minha primeira leitura desse livro a decisão de dedicar os meus estudos prioritariamente à filosofia.

É por isso que me foi irresistível o convite para escrever esta apresentação. Aceitei-o, portanto, e reli o livro. Muita paixão literária da juventude perece, quando submetida a um olhar maduro. No caso de A montanha mágica, porém, creio que a experiência e os estudos me tenham armado para captar ainda melhor as inúmeras sugestões, alusões e sutilezas que, tendo escapado ao adolescente sem lhe fazerem falta, aumentam o deleite do adulto: o fato é que, para mim, ela se provou uma dessas obras-primas que não apenas resistem ao tempo, mas com ele crescem.


Apresentação a: MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad. de Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira2006.

A ideologia marxista hoje

JÁ CITEI uma vez, nesta coluna, a observação do filósofo Theodor Adorno no ensaio "As Estrelas Descem à Terra" de que, ao semierudito, "a astrologia [...] oferece um atalho, reduzindo o que é complexo a uma fórmula prática e oferecendo, simultaneamente, uma agradável gratificação: o indivíduo que se sente excluído dos privilégios educacionais supõe pertencer a uma minoria que está "por dentro'". Na época, mostrei que tal descrição convém também à ideologia religiosa do apóstolo Paulo, assim como à de Martinho Lutero. Pois bem, o fato é que ela se aplica igualmente bem a ideologias seculares, tais como o marxismo vulgar.

Embora tencione dar uma chave para o entendimento do mundo, como uma religião, o marxismo, longe de se tomar como religião, considera-se inteiramente racional, declarando-se tanto filosofia quanto ciência da história e da sociedade. Isso faculta ao semierudito ter-se, do ponto de vista cognitivo, como superior também aos eruditos que, por diferentes razões, não tenham adotado a concepção marxista.

Como, além disso, essa concepção do mundo quer fundamentar uma teoria revolucionária, tendo em vista a superação do capitalismo e a instauração do comunismo, sociedade em que pretende que não haverá mais propriedade privada dos meios de produção, nem diferentes classes sociais nem os flagelos da exploração e da opressão do ser humano pelo ser humano, os marxistas, já pelo simples fato de se posicionarem a favor de tal revolução, consideram-se, a priori, superiores, também do ponto de vista ético, a todos que não o tenham feito.

Para esse modo de pensar, o mundo existente, em que domina o modo de produção capitalista, é inteiramente degradado. Nele, qualquer progresso é tido como meramente adjetivo, quando não fictício. A democracia existente -qualificada de "burguesa"- não é valorizada senão enquanto caminho para a revolução. Só esta deverá trazer um progresso real.

Hoje, porém, nem os marxistas podem pretender saber como se daria a superação do capitalismo. Não ignoro que, se questionados, certamente falariam em "socialismo". Concretamente, porém, que poderia significar para eles tal palavra?

Seu socialismo certamente nada teria a ver com a social-democracia, pois esta, sendo compatível com o capitalismo, não representaria sua superação. Tratar-se-ia então do socialismo como a estatização dos meios de produção, tal como se deu, por exemplo, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas?

Será realmente possível identificar a estatização com o socialismo, que seria a transição para o comunismo? Friedrich Engels diria que não, pois afirmava que "quanto mais forças produtivas o Estado moderno passa a possuir, quanto mais se torna um capitalista total real, tantos mais cidadãos ele explora. Os trabalhadores continuam assalariados, proletários. Longe de ser superada, a relação capitalista chega ao auge". Dado que a propriedade estatal dos meios de produção não garante a posse real deles pelos trabalhadores, ela é capaz de não passar de uma forma de capitalismo de Estado. A superação do capitalismo somente se daria quando a sociedade, aberta e diretamente, sem a intermediação do Estado, tomasse posse das forças produtivas. Note-se bem: a propriedade estatal dos meios de produção, consistindo na manifestação extrema de uma relação de produção capitalista, está longe de ser a posse social dos mesmos.

Os revolucionários russos não pensaram assim. Tomando a estatização da economia sob a ditadura do Partido Comunista, pretenso representante do proletariado, como a instauração do socialismo (que seria o primeiro passo para o comunismo), supuseram que já haviam deixado para trás o modo de produção capitalista.

O fato, porém, é que a própria extinção da URSS e o caráter selvagem e mafioso do capitalismo que hoje vigora na Russia se encarregaram de desmentir essa pretensão. Em obra recente, o marxista Alain Badiou reconhece que “sob a forma do Partido-Estado, experimentou-se uma forma inédita de Estado autoritário e mesmo terrorista, de todo modo muito separado da vida das pessoas”. E conclui: “O princípio da estatização era em si mesmo viciado e por fim ineficaz. O exercício de uma violência policial extrema e sangrenta não conseguiu salvá-lo de sua inércia burocrática interna e, na competição feroz que lhe impuseram seus adversários, não foram precisos mais de cinquenta anos para mostrar que ele jamais venceria”.

A Revolução Cultural Chinesa pode ser entendida como uma tentativa de mobilizar as massas contra o estabelecimento de uma situação semelhante, na China. Seu líder, Mao Tse-tung, chegou a dizer: “Não se sabe onde está a burguesia? Mas [nos países socialistas] ela se encontra no Partido Comunista!” Como, porém, as “massas” são necessariamente plurais, particulares, instáveis e manobráveis, o fato é que, na época moderna, qualquer “democracia direta” não pode passar de uma quimera. Não admira, portanto, que a Revolução Cultural se tenha tornado extremamente caótica e violenta, de modo que, por fim, tenha sido necessário, como diz Badiou, “restabelecer a ordem nas piores condições”. O resultado é que impera hoje na China o mais brutal capitalismo, tanto estatal quanto privado.

A verdade é portanto que, como nem a centralização, sob a égide do Partido, nem a mobilização das massas logram superar o capitalismo, não se sabe – jamais se soube realmente– como se daria tal superação.

Contudo, só a miopia ideológica impede de ver que, embora a "Revolução" se tenha revelado um beco sem saída, o mundo em que vivemos encontra-se em fluxo incessante; e que a sociedade aberta, os direitos humanos, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual compatível com a existência da sociedade, a autonomia da arte e da ciência etc. -que constituem exigências inegociáveis da crítica, isto é, da razão- constituem também as verdadeiras condições para torná-lo melhor.

William Butler Yeats: "No second Troy" / "Nenhuma Tróia a mais": tradução de Agusto de Campos

Nenhuma Tróia a mais

Por que culpá-la se ela encheu meus dias 
De mágoa, ou se incitou às tropelias 
Os ignorantes e jogou com vidas, 
Pondo as vielas contra as avenidas, 
Quando eles tinham ousadia e flama? 
Como fugir a essa pulsão funesta 
Que a nobreza fez simples como a chama? 
Beleza como um arco tenso, raça 
Estranha a uma era como esta, 
E cruel, de tão alta e singular? 
Que poderia ela contra a graça? 
Que Tróia a mais teria que incendiar? 




No second Troy

Why should I blame her that she filled my days 
With misery, or that she would of late 
Have taught to ignorant men most violent ways, 
Or hurled the little streets upon the great, 
Had they but courage equal to desire? 
What could have made her peaceful with a mind 
That nobleness made simple as a fire, 
With beauty like a tightened bow, a kind 
That is not natural in an age like this, 
Being high and solitary and most stern? 
Why, what could she have done being what she is? 
Was there another Troy for her to burn? 

A poesia! A poesia está guardada nas palavras, é tudo que eu sei.

Meu fado é não entender quase tudo; sobre o nada eu tenho profundidades. Eu não cultivo conexões com o real. Para mim poderoso não é aquele que descobre o ouro; poderoso pra mim é aquele que descobre as insignificâncias do mundo e as nossas. Por essa pequena sentenca me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado e chorei. Sou fraco para elogios.
Manoel de Barros

Já me fizeram muitas vezes esta pergunta: "você quer destruir tudo, mas o que surgirá depois?" respondi com um trecho de um poema de Brecht:

"A parábola do Buda sobre a casa em chamas".

Buda disse: "uma casa estava pegando fogo. Havia gente lá dentro. Alguém gritou-me pela janela: como está o tempo aí fora? chovendo? ventando?

"Afastei-me sem responder"

Senhor Richard Löwenthal

 Senhor Richard Löwenthal acredita que a moderna tecnologia reforça a posição dos especialistas em todos os setores da sociedade que vivemos, não só a dos especialistas da técnica, mas também a dos especialistas da organização e da tomada de decisões. De fato o senhor Löwenthal tem razão. Mas isso torna cada vez mais importante saber quem são esses especialistas. São especialistas da guerra ou especialistas da paz? São especialistas da exploração intensiva ou especialistas de uma técnica social e econômica que deseja o inverso? Eu acredito que o papel dos intelectuais é o de zelar para que se formem no futuro os especialistas da libertação. Melhor, para mim a especialização é imoral.
Sobre o Autor: Herbert Marcuse
Nascido em 1979, foi um influente sociólogo e filósofo alemão naturalizado norte-americano, pertencente à Escola de Frankfurt. Marcuse preocupava-se com o desenvolvimento descontrolado da tecnologia, e com seus impactos na sociedade. Como estudioso buscava encontrar brechas para conseguir destruir o capitalismo. Morreu em 1979 na Alemanha.

"À sombra das maiorias silenciosas"

Na noite da extradição de Klaus Croissant(1), a televisão transmitia um jogo de futebol em que a França disputava sua classificação para a Copa do Mundo. Algumas centenas de pessoas se manifestam diante da Santé, alguns advogados correm na noite, vinte milhões de pessoas passam sua noite diante da televisão. Quando a França ganhou, explosão de alegria popular. Horror e indignação dos espíritos esclarecidos diante dessa escandalosa indiferença. Le Monde: “21 horas. Nesta hora o advogado alemão já foi retirado da prisão da Santé. Daqui a pouco Rocheteau vai marcar o primeiro gol”. Melodrama da indignação. Nenhuma única interrogação sobre o mistério dessa indiferença. Uma única razão sempre invocada: a manipulação das massas pelo poder, sua mistificação pelo futebol, De qualquer maneira, essa indiferença não deveria existir, ela não tem nada a nos dizer. Em outros termos, a "maioria silenciosa" é despossuída até de sua indiferença, ela não tem nem mesmo o direito de que esta lhe seja reconhecida e imputada, é necessário que também esta apatia lhe seja insuflada pelo poder.


Que desprezo atrás dessa interpretação! Mistificadas, as massas não saberiam ter comportamento próprio. De tempos em tempos se lhes concede uma espontaneidade revolucionária através da qual elas vislumbram a “racionalidade do seu próprio desejo”, isso sim, mas Deus nos proteja de seu silêncio e de sua inércia. Ora, é exatamente essa indiferença que exigiria ser analisada na sua brutalidadepositiva, em vez de ser creditada a uma magia branca, a uma alienação mágica que sempre desviaria as multidões de sua vocação revolucionária.

Mas, por outro lado, como é que ela consegue desviá-las? Com relação a este fato estranho, pode-se perguntar: por que após inúmeras revoluções e um século ou dois de aprendizagem política, apesar dos jornais, dos sindicatos, dos partidos, dos intelectuais e de todas as energias postas a educar e a mobilizar o povo, por que ainda se encontram (e se encontrará o mesmo em dez ou vinte anos) mil pessoas para se mobilizar e vinte milhões para ficar "passivas"? — e não somente passivas, mas por francamente preferirem, com toda boa fé e satisfação, e sem mesmo se perguntar por que, um jogo de futebol a um drama político e humano? É curioso que essa constatação jamais tenha subvertido a análise, reforçando-a, ao contrário, em sua fantasia de um poder todo-poderoso na manipulação, e de uma massa prostrada num coma ininteligível. Pois nada disso tudo é verdadeiro, e os dois são um equívoco: o poder não manipula nada e as massas não são nem enganadas nem mistificadas. O poder está muito satisfeito por colocar sobre o futebol uma responsabilidade fácil, ou seja, a de assumir a responsabilidade diabólica pelo embrutecimento das massas. Isso o conforta em sua ilusão de ser o poder, e desvia do fato bem mais perigoso de que essa indiferença das massas é sua verdadeira, sua única prática, porque não há outro ideal para inventar, não há nada a deplorar, mas tudo a analisar a respeito disso como fato bruto de distorção coletiva e de recusa de participar nos ideais todavia luminosos que lhes são propostos.

De: BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.16-18,


Nota (retirada da Wikipedia):
1 - Klaus Croissant (1931-2002) era um advogado da Facção do Exército Vermelho que o promotor Rebmann mostrou “ter organizado em seu gabinete a reserva operacional do terrorismo alemão ocidental”. Contra sua prisão foi organizada uma campanha da qual, entre outros, Jean-Paul Sartre, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari tomaram parte. Ele se refugiara na França em 10 de julho de 1977, antes de ser preso em Paris em 30 de setembro. Apesar de protestos e demonstrações na Alemanha, na França e na Itália, a corte de apelo criminal de Paris decidiu a favor da extradição para a República Federal da Alemanha em 16 de novembro de 1977, na noite do jogo de futebol a que Baudrillard se refere.
http://antoniocicero.blogspot.com/search/label/Baudrillard
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3622908-EI12584,00-Insanidade+na+aurora+Cioran+e+tragedia+do+existir.html

“Genealogia do fanatismo” (primeira parte do livro Breviário da Decomposição):


“Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada… Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas. Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o improvável. Mesmo quando se afasta da religião o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a “Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada… Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas. Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua idéia em deus: as conseqüências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela idéia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. (…) O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou no político, os que distinguem entre o fiel e o cismático. No momento em que nos recusamos a admitir o caráter intercambiável das idéias, o sangue corre… Sob as resoluções firmes ergue-se um punhal; os olhos inflamados pressagiam o crime. Jamais o espírito hesitante, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso: o princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania prometéica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções e que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça – vícios mais nobres do que todas as suas virtudes -, embrenhou-se em uma via de perdição, na história, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse… (…) Disso resulta o fanatismo – tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia pela profecia e pelo terror … Só escapam a ela os céticos (ou os preguiçosos e os estetas) porque não propõem nada, porque – verdadeiros benfeitores da humanidade – destroem os preconceitos e analisam o delírio. (…) Em um espírito ardendente encontramos o animal de rapina disfarçado; não poderíamos defender-nos demasiado das guarras de um profeta… Quando elevar a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro de nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem, impô-la a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não procurasse comunicá-la aos outros é um fenômeno estranho à terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável. (…) O fanático é incorruptível: se mata por uma idéia, pode igualmente morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. (…)”