sexta-feira, 9 de março de 2012

“Genealogia do fanatismo” (primeira parte do livro Breviário da Decomposição):


“Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada… Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas. Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o improvável. Mesmo quando se afasta da religião o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a “Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada… Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas. Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua idéia em deus: as conseqüências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela idéia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. (…) O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou no político, os que distinguem entre o fiel e o cismático. No momento em que nos recusamos a admitir o caráter intercambiável das idéias, o sangue corre… Sob as resoluções firmes ergue-se um punhal; os olhos inflamados pressagiam o crime. Jamais o espírito hesitante, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso: o princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania prometéica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções e que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça – vícios mais nobres do que todas as suas virtudes -, embrenhou-se em uma via de perdição, na história, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse… (…) Disso resulta o fanatismo – tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia pela profecia e pelo terror … Só escapam a ela os céticos (ou os preguiçosos e os estetas) porque não propõem nada, porque – verdadeiros benfeitores da humanidade – destroem os preconceitos e analisam o delírio. (…) Em um espírito ardendente encontramos o animal de rapina disfarçado; não poderíamos defender-nos demasiado das guarras de um profeta… Quando elevar a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro de nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem, impô-la a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não procurasse comunicá-la aos outros é um fenômeno estranho à terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável. (…) O fanático é incorruptível: se mata por uma idéia, pode igualmente morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. (…)”

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